1954, UM ANO CONTURBADO

Palácio do Catete

O ano de 1954 foi um dos mais conturbados da história republicana brasileira. Em fevereiro, oitenta e dois coronéis, apoiados pelo então ministro da Guerra, general Ciro do Espírito Santo Cardoso, divulgaram manifesto criticando as greves dos trabalhadores e o custo de vida. Por um lado, o presidente demitiu o ministro e colocou, no Ministério da Guerra, o general Zenóbio da Costa, aceito sem restrições pelos militares por ter sido um dos comandantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, o presidente teve que ceder, demitindo o ministro do Trabalho, João Goulart, por causa da proposta de aumento de 100% do salário mínimo. Em 1 de maio, nas comemorações do Dia do Trabalho, entretanto, o próprio presidente aumentou o salário mínimo em 100% (a inflação prevista era de 54%, o que geraria aumento real de 46% nos salários). Em seguida, foi divulgado um falso acordo secreto entre os governos populistas de Perón e Vargas, e isso deu origem à proposta de abertura de um processo de impeachment contra o presidente. Em 16 de junho, a Câmara dos Deputados recusou por ampla maioria a abertura do processo.

Ainda em maio ocorreu a morte do jornalista Nestor Moreira, do jornal A Noite , casado e pai de dois filhos. Ele foi violentamente espancado pelo policial Paulo Ribeiro Peixoto, vulgo “Coice de Mula”, com ajuda de dois vigilantes e sob o olhar de um comissário da 2ª DP. Após 11 dias agonizando, o jornalista morreu e foi enterrado em clima de consternação e revolta, em 23 de maio. Esse acontecimento comoveu a opinião pública e revoltou toda a imprensa, dadas as características do caso semelhanças com as práticas da SS nazista ou do Estado Novo do próprio Getúlio Vargas, em relação ao tratamento com a imprensa e com os opositores do regime (o livro Memórias do Cárcere , de Graciliano Ramos, registra esta época). A revolta contra a impunidade, a corrupção generalizada e a violência, que dominava grande parte da opinião pública antes da democratização do país, aumentou após a queda de Vargas no final de 1945, e persistiu quando o ex-ditador foi eleito presidente democraticamente em 1950.

Carlos Lacerda

Começava o mês de agosto de 1954, as eleições legislativas federais e estaduais seriam dali a dois meses. O clima no país era tenso por causa da radicalização entre getulistas e antigetulistas. O jornalista Carlos Lacerda estava em campanha para deputado federal e usava seu jornal, Tribuna da Imprensa , para atacar o presidente. Este jornalista já havia sofrido duas agressões físicas (tratadas na época como atentados) por causa de sua moralizante campanha contra a corrupção. Em 1948, quando era vereador, no Rio de Janeiro, levara uma surra de várias pessoas quando saía da Rádio Mayrink Veiga. Carlos Lacerda acusou o então prefeito do Rio, general Angelo Mendes de Morais, de mandante do atentado. Em 14 de maio de 1950, o coronel da Aeronáutica, Guilherme Aloísio Teles Ribeiro trocou socos com Lacerda, à saída do elevador, no 10º andar do Edifício Albervânia, na Rua Toneleros nº 180, por causa das denúncias da Tribuna da Imprensa , que acusara o coronel de fazer negociatas com Artur Pires, presidente do Sesc.

Os componentes da crise

A crise econômica do Brasil era grave em 1954, havia os fatores externos da crise do preço internacional do café e a dificuldade da venda da safra e o fator interno do aumento do salário mínimo e do custo de vida. Estes fatores econômicos estavam causando tensão e gerando uma crise política até aquele momento contornada pelo presidente Vargas. Na madrugada do dia 5 de agosto de 1954, o jornalista Carlos Lacerda levou um tiro no pé e seu acompanhante, o major Vaz, foi morto com dois tiros. A imprensa teve papel importante nos acontecimentos de agosto de 1954. O crime da rua Toneleros mobilizou a maior parte da imprensa na campanha pela renúncia do presidente. O agravamento da crise política, que agora se transformara em político-militar, levou o presidente ao suicídio no dia 24 de agosto de 1954.

Os principais órgãos de imprensa atuaram na formação de um consenso a respeito da crescente inviabilidade política e moral do governo Vargas. A radicalização da imprensa e dos militares (que apostavam, agora, na mesma solução de 1945) impediram a resolução do impasse político por meios legais, curiosamente estávamos na democracia e não mais na ditadura do Estado Novo, mas se buscava a antiga solução. O presidente Vargas, em seu diário, já escrevera que se a Revolução de 1930 fracassasse, ele se mataria. Em 1938, no atentado integralista ao Palácio Guanabara, Vargas guardara algumas balas para se matar e à família, caso fosse necessário, pois não iria se render. Diante do quadro político de 1954, o presidente se viu diante de situação vivida duas vezes antes. Desta vez, ele foi até o fim.

Jornalista Samuel Wainer

Os jornais de maior circulação da época, no Rio de Janeiro, eram Correio da Manhã, Diário de Notícias, Diário Carioca, O Globo, O Jornal e, em São Paulo, O Estado de São Paulo e Folha da Manhã. Os outros jornais importantes da época e que estavam em pólos opostos (extremos dentro do espectro jornalísticos e que, portanto, não serão analisados) eram Última Hora, de Samuel Wainer, de grande circulação, que fazia a defesa sistemática do governo Vargas, e Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, de pequena circulação, mas que fazia a maior campanha de ataques diários a Vargas.

Etapas da crise

A crise de agosto de 1954 foi analisada no livro Vargas e a crise dos anos 50 (pp.23-69), seguindo a evolução dos citados sete primeiros jornais em relação às fases da crise, mas não deixando de acompanhar como atuaram os dois últimos jornais citados. A primeira etapa da crise correspondeu à apresentação do atentado e à construção de grave momento político e moral. A segunda etapa foi a fase da acusação de culpa do presidente, mesmo que indiretamente, no clima de insegurança do país por causa do envolvimento da Guarda Pessoal no atentado.  A terceira etapa foi a fase do apelo à renúncia diante da inviabilidade política de continuação do governo Vargas. A quarta e última etapa foi a fase da imposição da renúncia ou deposição por causa da incapacidade moral do presidente em continuar governando e sua perda de autoridade política e administrativa.

Os jornais O Globo, O Jornal e Folha da Manhã fizeram cobertura moderada, com menor apelo emocional contra o presidente, tanto é verdade que depois da apresentação do início da crise passaram diretamente ao apelo à renúncia, mas tardiamente: O Globo, em 21 de agosto, e os outros dois jornais no próprio dia do suicídio. Isso. não impediu que O Globo fosse atacado por populares por causa da posição radical da Rádio Globo, que abrira espaço, no ar, para a UDN durante toda a crise. O papel das rádios também mereceria trabalho à parte, principalmente por causa da divulgação da Carta-Testamento e sua conseqüências para o país.

Diário de Notícias, O Estado de São Paulo, Diário Carioca e Correio da Manhã seguiram as quatro fases. A diferença é que os três primeiros defenderam a imposição da renúncia, respectivamente, nos dias 13, 14 e 15 de agosto, pois a ideia ganhara força, naquele final de semana, durante a Assembléia do Clube Militar, e isso acabou tendo ampla divulgação. O Correio da Manhã fazia a defesa de uma saída legal sem golpes, e pregou a imposição da renúncia apenas no dia 19 de agosto, quando foram revelados os negócios escusos que envolviam Gregório Fortunato. Depois disso, os jornais mais moderados já iniciariam o apelo à renúncia, como já foi dito. O cerco da imprensa e dos militares se fechava contra o presidente e a data limite seria 25 de agosto, Dia do Soldado.

O presente artigo faz a reconstituição do momento do crime da rua Toneleros, dando a versão mais plausível a partir da visão de Alcino João do Nascimento, que matou o major Vaz e atirou em Lacerda, dos demais envolvidos e das testemunhas do crime. Na conclusão, há uma análise histórica do significado do atentado a Carlos Lacerda.

Fonte: Observatório da Imprensa

Por Luiz Roberto Guimarães da Costa Júnior – Mestrando em Ciência Política (IFCH/Unicamp)