Riso solto em tempos difíceis

Stanislaw Ponte Preta batizou o golpe militar de 1964 de “a redentora” e empenhou sua visão satírica para denunciar e combater os atos de repressão da ditadura

Por Dislane Zerbinatti Moraes

Quem não se lembra, ou já não ouviu falar, do Febeapá, Festival de besteira que assola o país, como uma frase simbólica do período da ditadura militar? E do “Samba do Crioulo Doido”, retrato afetivo das camadas pobres, marginalizadas – que não conseguiam entender a história do Brasil, mas eram obrigadas pelo governo de Getúlio Vargas a fazer dela assunto dos enredos das escolas de samba? E como esquecer Tia Zulmira, personagem que representava a racionalidade, a coerência, a inteligência – num período em que isso era moeda rara -, dizendo que estávamos “caindo no perigoso terreno da galhofa”, quando pensávamos nas peripécias das autoridades militares para se justificarem como representantes legítimos do Estado brasileiro? Sim, Stanislaw Ponte Preta nos legou uma imagem poderosa, iluminada, colorida e sintética do significado do golpe militar, com o seu humor de surpresa, de inversão de expectativas e de condensação de idéias. Não há nada mais saboroso do que rir e pensar na forma irônica como o autor chamava a ação militar: a “redentora”.

Em 9 de abril de 1964, a junta militar que havia realizado o golpe se auto-legitima, dizendo-se revolucionária. O Legislativo e o Judiciário passaram a ser controlados pelo Executivo. Os direitos e as garantias constitucionais e legais foram suspensos. A partir daí, criaram-se os inquéritos policiais militares (IPMs) para investigar as atividades dos funcionários civis e militares e identificar quem estivesse ligado a ações subversivas. Os coronéis designados para chefiar os IPMs assumiam uma posição de poder quase ilimitado. Aos poucos, surgiu um grupo de oficiais chamados de “linha dura”. A acusação de subversão era acolhida sem que houvesse a preocupação de investigar a fidedignidade e a confiabilidade dos informantes e dos fatos narrados por estes. Os testemunhos da opinião pública e do delator bastavam. Assim, intelectuais e operários foram presos por serem considerados “subversivos, comunistas e agitadores” pela “opinião pública”. Filhos e parentes de pessoas consideradas comunistas “herdavam” o rótulo de subversivos.  O número de pessoas envolvidas em IPMs foi muito grande, mas é difícil precisar a quantidade de inquéritos – instalados em todos os órgãos burocráticos e instituições de ensino do governo, empresas estatais e autarquias.

A imprensa reagiu como pôde, apesar do clima de terror e de insegurança instalado no país. Uma das vozes mais importantes foi a de Sérgio Porto, que na época assumiu – com humoristas e chargistas como Millôr Fernandes ou Jaguar – a função de denunciar e combater os métodos de coerção e os atos de repressão do regime militar.

Stanislaw Ponte Preta é o heterônimo do escritor e jornalista Sérgio Porto – personagem criado pelo autor para falar de política com humor. Alguns críticos diziam que o cronista Stanislaw Ponte Preta praticava um gênero menor, a crônica humorística, e que Sérgio Porto se dedicava à verdadeira criação literária, ao tratar de assuntos sérios.

No entanto, o trabalho de linguagem e o estilo que permeiam sua obra toda comprovam, definitivamente, que Sérgio Porto era um arguto observador tanto da natureza humana quanto das questões históricas de seu tempo. Humor, lirismo e crítica social em doses certas. Suas crônicas, publicadas nos principais jornais e revistas na década de 1960, são importantes documentos da vida política da época. Elas reconstituem os momentos que antecederam o golpe militar de 64, o clima de delação e perseguição política instalado logo após, os desdobramentos do governo entre 1964 e 1968. Com humor sarcástico, ferino e audacioso.

Caso especial na história do humorismo brasileiro, apesar da popularidade do heterônimo, seus leitores sabiam que Stanislaw era Sérgio Porto. Ele administrou, simultaneamente, duas carreiras. Como Stanislaw, Sérgio parodiava os colunistas sociais, que faziam tanto sucesso nas décadas de 1950 e 1960, principalmente Ibrahim Sued. E o nome foi inspirado em Serafim Ponte Grande, personagem satírico de Oswald de Andrade. Aos poucos, Stanislaw ficou tão conhecido do grande público que ganhou autonomia literária. Sérgio Porto não se fez de rogado: a maioria de seus livros levou a assinatura de Stanislaw. O próprio autor brincava com isso, dizendo que Stanislaw era “incomparável”, de tão “petulante”, “perspicaz” e “criativo”.

Sérgio Porto nasceu no Rio de Janeiro em 11 de janeiro de 1923 e faleceu em 29 de setembro de l968. Representante típico da classe média, cursou a Faculdade de Arquitetura até o terceiro ano. Em 1942, ingressou no Banco do Brasil, onde trabalhou durante 23 anos, e chegou a exercer funções de assessoria de imprensa no Palácio do Catete no tempo de Juscelino.  Pediu demissão em 1965, segundo a viúva Dirce de Araújo Porto, “porque não gostava dos generais”. Ainda bancário, iniciou sua carreira jornalística em 1949, fazendo um pouco de tudo. Foi cronista esportivo, repórter policial, crítico de cinema e de música. Em l954 passou a escrever para o jornal Última Hora, com colunas assinadas, até o dia em que morreu, vítima de problemas cardíacos.

Escreveu também para os jornais Tribuna da Imprensa, Diário da Noite e O Jornal e para as revistas Manchete, Fatos & Fotos, O Cruzeiro, Senhor e Revista de Música Popular. Participou da criação da revista Mundo Ilustrado, junto com o pintor Santa Rosa e Lúcio Rangel. Registrou seu cunho humorístico no jornal O Comício (dirigido por Rubem Braga e Joel Silveira, colaborando ao lado de Antônio Maria, Millôr Fernandes, Clarice Lispector, Otto Lara Resende, Rafael Corrêa de Oliveira), na revista Pif-Paf e na Revista Carapuça, cujo tom humorístico e satírico foi recuperado com a criação de O Pasquim, em 1969. Segundo Jaguar, companheiro de trabalho no Banco do Brasil, amigo e também chargista dos livros de Stanislaw, o estilo coloquial de O Pasquim foi herança deixada pelo humorista. Aliás, o primeiro número foi dedicado a Sérgio Porto, então já falecido.

Profissional multimídia, ele trabalhou em rádio como comentarista esportivo, autor de textos humorísticos e de programas sobre música popular brasileira. Na televisão – TV Rio, TV Tupi, TV Excelsior e TV Globo –, redigiu programas humorísticos e jornalísticos. Na TV Tupi, lançou a célebre eleição das “Dez mais certinhas do Lalau” – paródia dos concursos das “Dez mais elegantes” promovidos pelos colunistas sociais. Entrou na “máquina de fazer doido”, apelido dado por ele à televisão, apresentando no programa Noite de Gala, da TV Rio, o quadro “Stanislaw Ponte Preta de Costas para a Fama”. Ainda na televisão, criou e apresentou o programa “Stanislaw Ponte Preta Show”, uma revista de variedades e música popular, e o Jornal de Vanguarda (l962-l968). Este último inovou a linguagem do telejornalismo, agora informal, com a presença de locutores, humoristas e comentaristas especializados no seu elenco.

Para o cinema, escreveu os diálogos dos filmes “É do Chuá” (l958), “E o Bicho não deu”(l959), e os argumentos de episódios do filme “As Cariocas” (l967). Para o teatro, escreveu várias revistas musicais, como “Brasil Pede Passagem” (l965), sobre Castro Alves, e “Show do Crioulo Doido”, em que contava a história da música popular brasileira. Escreveu também a peça “Berço Esplêndido”, que, junto com “O Berço do Herói”, de Dias Gomes, foi censurada.

Sua intensa produção foi publicada em livros como O homem ao lado, que recebeu nova edição ampliada com A casa demolida, em que o objeto de crítica é a cidade moderna, reformada nos anos 1950. Em suas crônicas, Sérgio Porto, que viveu as transformações urbanas de Copacabana e do Leblon durante os anos 1950 e 1960, trata do caos urbano, da ausência de praças, da demolição das casas e da construção de novos edifícios, do novo traçado das ruas, que dificultam às pessoas a identificação com o lugar onde nasceram e viveram. Nos anos 1960, passou a publicar livros essencialmente humorísticos.

O Febeapá é de 1966, mas Stanislaw, na própria abertura, diz que “é difícil para o historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o País.” (Febeapá 1). Uma longa introdução simula a linguagem jornalística e cita frases de políticos da época, misturadas a um conjunto de pequenas histórias ficcionais. O livro fez enorme sucesso e gerou os Febeapá 2 e 3 em seqüência – respectivamente, em 1967 e l968. Contador de piadas por excelência, Stanislaw apresentava um humor sintético, rápido, esperto. O arranjo sutil das notícias resultou em um quadro extremamente colorido do que ele chamava de “estupidez nacional”.

Os militares e os políticos são caracterizados como burros, ignorantes e violentos, e assim ele ridicularizava e censurava as ações do governo. No primeiro Febeapá, narra a história do “coronel [que] brigou com o major porque um cachorro de propriedade do primeiro conjugava o verbo defecar no meio da portaria do edifício de onde o segundo era síndico. Por causa do que o cachorro fez, foi aberto um IPM de cachorro. King – este era o nome do cachorro corrupto – cumpriu todas as exigências de um IPM. Seu depoimento na Auditoria foi muito legal. Ele declarou que au-au-au”. A imagem da corporação militar é desfocada pela situação cômica de um coronel e um major acionando um IPM para resolverem o conflito de vizinhança causado pelo cachorro. O despropósito da situação ficcional é análogo aos despropósitos das situações reais envolvendo as forças militares e os suspeitos de subversão.

Os golpistas se diziam revolucionários. Stanislaw apelidou o golpe de “a redentora”. As autoridades se pronunciavam com pedantismo e autoritarismo, Stanislaw dizia que haviam criado o estilo “cocoroca”. Ao citar seus discursos de maneira descontextualizada, ele provocava a reflexão do leitor. Além disso, percebe-se um projeto utópico de defesa da democracia e da justiça social no país. Apesar disso, amigos jornalistas que o conheceram, como Paulo Francis, diziam que Stanislaw não acreditava em projeto político algum. E o próprio Stanislaw, no seu Auto-Retrato do Artista quando não tão jovem, de l963, afirmava-se incapaz de se deixar “arrebatar por política”.

A sátira utiliza os processos de deformação para destacar os defeitos, os atos condenáveis. Propõe uma reflexão entre o certo e o errado, a virtude e o vício, o real e a fantasia. Transforma em problema as idéias aparentemente consensuais. Encontramos em Stanislaw comparações entre deformidades morais e físicas e entres seres e animais, com o objetivo de rebaixar a imagem ou a atitude consideradas erradas, viciosas. Era considerado “implacável com a estupidez e a maldade humanas”. Como cronista da irreverência, escreve pelo avesso, pratica transgressões de linguagem e de sentidos. Aplica o estilo literário da carnavalização, invertendo o sentido do poder, destronando os poderosos e entronizando personagens do cotidiano: do café-society aos trabalhadores; dos playboys aos malandros e loucos; das  mulheres bonitas e grã-finas às feias, gordas e pobres; dos personagens curiosos que povoavam a praia de Copacabana aos que freqüentavam os bares famosos (Zeppelin, Calypso, Antonio’s, entre outros). Era o ponto de vista da boemia carioca dos anos 60, composta por gente de teatro, cinema, sambistas, bossa-novistas (conta-se que foi Sérgio Porto quem criou a expressão “bossa nova”), escritores e jornalistas, vagabundos e bêbedos, humoristas e chargistas, é claro.

A atmosfera de terror e perseguição é refletida nas situações cômicas. Segundo sua célebre personagem Tia Zulmira, “o policial é sempre suspeito”. Tanto que um delegado de Mato Grosso, em seu relatório sobre um crime político, concluiu: “A vítima foi encontrada em quatro pedaços, com os membros separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio.” (Febeapá 1)

Já o controle sobre a memória como elemento fundamental na consolidação do poder militar é mostrado em uma série de irreverências com os grandes personagens da história oficial do Brasil. É um tema sempre presente nas crônicas. Como, por exemplo, o episódio em que “o general Olímpio Mourão Filho doava ao Museu Mariano Procópio, de Juiz de Fora, a espada e a farda de campanha que usava como comandante das forças que fizeram a redentora de 1º de abril”. E conclui: “Isso é que é revolução: com pouco mais de dois anos, já estava dando peça para museu.” (Febeapá 1)

Em suas crônicas, Stanislaw criava personagens como Tia Zulmira, senhora sábia e experiente cujas afirmações representam a voz da racionalidade, da coerência, da defesa da ética, da sensatez. Entre as “máximas de Tia Zulmira”, ficou famosíssima a frase “Ou restaura-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”. Tia Zulmira constatou também que “a prosperidade de certos homens públicos do Brasil é a prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso do nosso subdesenvolvimento”. E ao abordar as perseguições da ditadura, disse: “Em política, de vez em quando alguém vai preso em nome da liberdade”.

Outros personagens eram Primo Altamirando, o Mirinho, malandro brasileiro, corrupto, pedante, anticomunista, machista, conquistador. Em contraposição à Tia Zulmira, ele representa todos os vícios da política nacional. Já Rosamundo das Mercês é distraído, ingênuo e um pouco lunático. Bonifácio, o Patriota, como diz o nome, é nacionalista e adesista e, de vez em quando, citava um personagem advogado, Dr. Data Vênia.

Em julho de l968, Stanislaw e o Quarteto em Cy apresentaram a revista musical “Show do Crioulo Doido”. O show fazia muito sucesso no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro. A música “Samba do Crioulo Doido” ficou conhecida nacionalmente e Juscelino Kubitschek, citado na letra, foi ao espetáculo. Sua presença colaborou para que o show fosse considerado um espaço de resistência ao golpe militar de l964 e um sinal de apoio à Frente Ampla, movimento de oposição extraparlamentar liderado por Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart.

Em 26 de julho de l968, o humorista denunciou que havia sofrido um atentado terrorista de direita por parte do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). No intervalo do show, ele teria tomado um café envenenado com algum psicotrópico. Sérgio sentiu-se mal, foi para casa e tomou um calmante. Ficou 30 horas acordado. Por isso, foi internado no Instituto Brasileiro de Cardiologia.  Ele já tivera dois infartos e os médicos recomendavam que levasse uma vida menos agitada. Mas quis viver intensamente. Trabalhava 12 horas por dia, procurando dar conta de todas as atividades e da vida boêmia de Copacabana. De manhã, conta Millôr Fernandes, passava algum tempo na praia lendo vorazmente os jornais do dia. Recortava as notícias que lhe chamavam a atenção, e essa era a matéria de suas crônicas, que eram publicadas diariamente.

Sérgio não seguiu a recomendação médica. Acreditava que o incidente estava ligado às ações de repressão e que queriam atemorizá-lo, como haviam feito com o elenco da peça “Roda Viva” em São Paulo. Dois meses depois, no dia 29 de setembro, ele teve o terceiro infarto, fatal. Aos 45 anos, deixava uma obra imensa, dispersa em jornais e revistas e conservada na memória de quem leu seus textos e assistiu aos seus espetáculos teatrais e programas de rádio e televisão.


Dislane Zerbinatti Moraes é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese “O trem tá atrasado ou já passou”: a sátira e as formas do cômico em Stanislaw Ponte Preta, de 2003. É professora de Metodologia do Ensino de História da Faculdade de Educação da USP.