Gregório Fortunato “O Anjo Negro”

Gregório Fortunato - O anjo negro

Gregório Fortunato (denominado “O Anjo Negro” pela imprensa lacerdista), chefe da Guarda Pessoal do presidente, contratou Alcino João do Nascimento para seguir o jornalista Carlos Lacerda (denominado “O Corvo” pela imprensa getulista). Gregório tinha um livro de autoria de Stefan Zweig. O livro era a biografia de Joseph Fouché, homem que passou incólume pela Revolução Francesa, perigoso, bacharel na arte de tramar nos bastidores, mestre da intriga que soubera arrastar à guilhotina até Rosbespierre e depois passara a ser chefe de polícia de Napoleão. O poder intimidador de Fouché era grande, com seus arquivos secretos. Gregório Fortunato estava lendo este livro na noite de 4 para 5 de agosto de 1954.

Gregório queria levantar informações sobre os hábitos de Lacerda, seus negócios (tentando descobrir alguma irregularidade), seu posicionamento político, seus discursos e de quem recebia apoio. Lacerda era candidato a deputado federal nas eleições legislativas de 3 de outubro de 1954, além de ser o jornalista de mais feroz oposição a Getúlio Vargas. As informações obtidas seriam uma forma de municiar o governo para abrir algum processo contra seu opositor (represália aos constantes ataques ao governo).

Presidente Getúlio Vargas e guarda costa, Gregório Fortunato de chapéu. Jean Manzon/ Cepar Consultoria

Gregório Fortunato entregou um cartão da Ordem Política e Social a Alcino. Os trabalhos de investigação eram feitos por mais de duas centenas de pessoas da Guarda Pessoal do presidente. Tudo era de inteira responsabilidade de Gregório, que não queria envolver o presidente, caso ocorresse algum problema com seus subordinados que atuavam em equipes, fora do Palácio do Catete, para investigar várias pessoas. Outro trabalho era fazer a segurança, e o levantamento de locais, quando das viagens do presidente Vargas.

Começa a investigação

No final de 1953, Alcino começou a seguir e investigar a vida de Lacerda e, nos meses próximos às eleições, Gregório começou a enviá-lo com Climério. No Rio de Janeiro, Climério conhecia muitas pessoas amigas e inimigas, tinha 22 anos de trabalho e poderia ajudar na obtenção de informações, já que Alcino vivera muitos anos em Minas Gerais e agora tinha voltado ao Rio de Janeiro. Climério afastou-se do Palácio do Catete para trabalhar nessas diligências. Ele sempre ficava afastado da ação do companheiro, e Soares dirigia o carro. Em depoimento no IPM, Gregório se referiu a Climério afirmando que ele “era utilizado em reuniões públicas de modo não ostensivo porque ele não tinha apresentação para isso, sendo mesmo um tipo que despertava certa atenção, de modo que se tornava inconveniente para um policiamento digno”.

Concluídas as diligências que estava fazendo, durante a campanha eleitoral, Alcino entregava os relatórios a Gregório, na mesa cativa deste, na Churrascaria Gaúcha, nas Laranjeiras. Alcino tinha recebido a promessa de Climério de conseguir para ele um emprego de investigador de polícia para depois das eleições.

No dia 4 de agosto de 1954, Alcino teve um sonho: sonhou que atirava em alguém e atiravam nele. Um guarda tentava prendê-lo e ele também atirava. Lembrou-se que tinha ido a uma cartomante que dissera que ele ia ter azar e complicações com a Justiça. Nesse dia, Climério o chama, eles tinham que continuar a seguir Lacerda. Alcino diz que não queria ir. Climério o convence, pois ele, Alcino, tinha que fechar o relatório para entregar a Gregório. Faltavam dois meses para as eleições legislativas de 3 de outubro de 1954.

Terno branco e discurso

Alcino e Climério vão até o Externato [hoje Colégio] São José, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Lacerda, de terno branco, chega e faz seu discurso. Alcino verifica placas de carros, além de anotar pontos do discurso. Lacerda sai do colégio acompanhado de seu filho Sérgio, do major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz, que fazia a segurança à paisana para Lacerda, e mais duas pessoas que descem no caminho (uma delas era Amaral Netto), antes de o carro seguir para Copacabana.

No caminho até a rua Toneleros, o major Vaz e o jornalista Carlos Lacerda conversam no banco da frente do carro sobre os acontecimentos da noite, enquanto o filho de Lacerda está no banco traseiro. Por um lado, o major Vaz se mostra inquieto e preocupado com o filho Ronaldo, de 3 anos, que iria extrair as amígdalas na manhã seguinte, no Hospital da Aeronáutica, no Rio Comprido. Lacerda recomenda a Vaz que não assista à operação, pois, sofreria mais que a criança. Lacerda já havia passado por essa situação. Por outro lado, o major Vaz também estava contente com a compra de um telefone, no dia anterior, que era uma velha aspiração da esposa Lígia Vaz. Lacerda sugere então um almoço em comemoração à conquista do telefone.

Alcino encontra Climério, que o esperava no bar em frente ao colégio, pois na confusão da aglomeração de pessoas e de carros saindo não percebeu que Lacerda já havia partido em outro carro, e não no que viera. Climério já tinha telefonado a um taxista que conhecia, chamado Nelson Raimundo, que servira outras vezes à Guarda Pessoal e fazia ponto perto do Palácio do Catete, mas ele não estava naquele momento. [Nelson trabalhava numa barbearia de dia e era taxista à noite com um carro emprestado de um amigo que era taxista de dia. Nelson havia vendido o seu Mercury, e estava acertando a compra de outro carro. Nelson sequer conhecia Alcino, por isso durante os primeiros depoimentos, só revelou à polícia o nome de Climério. Depois que Alcino foi preso, Nelson lembrou-se de tê-lo visto uma vez conversando com Climério na barbearia onde trabalhava. Climério então ligou para o Café Palácio e deixou recado para Nelson pegá-lo na Tijuca. Passado pouco tempo, chega Nelson, que recebera o recado, e leva Climério e Alcino até Copacabana.

O motor ficou ligado

O Studebaker dirigido por Nelson pára e fica com o motor em funcionamento na rua Paula Freitas, transversal da rua Toneleros, em Copacabana, e ele fica aguardando a diligência. Climério e Alcino vão em direção à esquina da rua Hilário de Gouveia, onde ficam conversando e percebem a chegada de um carro com três pessoas que pára em frente ao Edifício Albervânia (rua Toneleros, nº 180), que tem uma rampa e é servido por uma garagem com uma porta pantográfica, cuja entrada ficava do lado direito do prédio. Carlos Lacerda, seu filho Sérgio, de 15 anos, e o major Vaz descem do carro. Climério atravessa à rua para a outra calçada da Hilário de Gouveia. Alcino caminha pela calçada oposta até a frente do edifício de Lacerda a fim de verificar a placa do carro, se era Lacerda, de terno branco e óculos, e se quem o acompanhava era o mesmo homem que vira no colégio horas antes.

Já passavam pouco mais de 30 minutos depois da meia-noite. Já era 5 de agosto de 1954, quando o major Vaz conversa com Lacerda comentando os acontecimentos da noite e ambos combinam novamente o almoço e se despedem, enquanto Lacerda já percebera as duas pessoas conversando na esquina e se afastando uma da outra. Lacerda e o filho se dirigem à porta do edifício, mas voltam, pois estavam sem chave para abrir a porta que estava fechada, e se dirigem à porta da garagem.

Nesse momento, Alcino, com um chapéu desabado, usando jaquetão cinza abotoado, caminha pela calçada do outro lado da rua, atravessa a rua com um cigarro aceso, fumando, em direção à outra calçada, perto do carro de cor branca para verificar a placa e quem era o motorista. O major Vaz vai abrir a porta do carro para entrar, mas grita “Ei! Pare aí! Quem é você?”, e vai em direção ao homem parado cerca de três metros atrás do carro, aquela hora da madrugada, em frente ao prédio de quem ele dava segurança.

Tiros na madrugada

Lacerda e o filho estavam na entrada da garagem do edifício. Lacerda se vira para acenar, despedindo-se novamente e percebe num rápido flash o que acontece a certa distância. O major Vaz tenta segurar Alcino. Durante a luta corporal, Alcino saca o Smith & Wesson, calibre 45 milímetros, dispara o primeiro tiro de baixo para cima e o segundo tiro de cima para baixo que acertam o peito do major Vaz e ambos caem ao chão, um para cada lado. Lacerda já sacara seu Smith & Wesson, calibre 38 milímetros, e o disparara em direção a Alcino, que se escondera atrás do carro e, meio agachado, também atirara, atingindo o pé de Lacerda numa troca de tiros. O major Vaz morreria a caminho do hospital no colo do jornalista Carlos Lacerda. No Hospital Miguel Couto, Lacerda recebeu anestesia local e foi constatada fratura óssea. O pé esquerdo sofreu uma limpeza cirúrgica no ferimento, depois foi enfaixado e, finalmente, foi colocada uma tala branca de papelão provisória por 24 horas porque na época o hospital não tinha ortopedista nos plantões noturnos. Dois dias depois, já em seu apartamento, foi colocado o gesso por causa da fratura óssea. Carlos Lacerda nunca entregou o próprio revólver para exame de balística: não confiava na polícia, pois poderia surgir alguma suspeita de tiro involuntário contra o major Vaz.

Havia um pequeno movimento na rua àquela hora da noite. O jornalista Armando Nogueira, que morava na rua Toneleros nº 186, foi uma das pessoas que testemunhou o crime. Dois amigos jornalistas, que também trabalhavam no Diário Carioca, estavam no interior de um Plymouth hidramático de cor verde, e Armando Nogueira conversava com eles, debruçado na janela do carro, quando percebeu a troca de tiros. Fato confirmado pelas investigações in loco do major Borges.

Depois da troca de tiros, Alcino sai correndo em direção à rua Paula Freitas, enquanto Lacerda entra pela garagem, sai pela porta da frente do prédio e termina de descarregar o revólver na direção de Alcino. Climério tinha fugido a pé pela Hilário de Gouveia, gritara que ouvira tiros e passara em frente à 12º DP, de onde saíam algumas pessoas.

Enquanto isso, o vigilante noturno Sálvio Romeiro estava a serviço rondando a casa do coronel Melquíades na rua Toneleros nº 89. O vigilante noturno Sálvio Romeiro contou estar naquele local por acaso, um desses acidentes do destino. Claudio de Lacerda Paiva assim relata: “Sálvio era guarda de uma polícia mantida pela antiga Prefeitura do Distrito Federal, com a incumbência de policiar praças públicas e prédios municipais. Uma polícia que andava fardada de cinza, chamada de Guarda Municipal. Dava plantões na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Mas naquela noite, de 4 para 5 de agosto, ao apresentar-se ao serviço, foi informado de que deveria trocar o plantão, indo para a rua Toneleros, esquina da rua Paula Freitas, onde morava o comandante da guarda, um oficial do Exército” (Paiva, 1994, p. 128).  Quando conversava com o vigia de uma obra nas proximidades, ouve tiros, sai correndo, e quando se aproxima da esquina da Paula Freitas vê Alcino andando apressadamente e dobrando a esquina. Grita para ele parar. Alcino atira em sua direção e acerta um tiro na perna esquerda do vigilante. Alcino rapidamente caminha até a segunda árvore da rua e entra no carro.

O Smith & Wesson cai na rua

O vigilante caído atira em direção ao carro e atinge a carroceria do Studebaker de cor vinho. O táxi partiu pela Avenida Copacabana em direção ao Flamengo. Na Avenida Beira-Mar, na altura da rua México, Alcino tenta jogar a arma, embrulhada numa flanela, na Baía de Guanabara, mas a arma caiu para fora do táxi por causa de uma manobra do motorista que desviara de um carro que vinha na direção contrária. A arma de uso privativo das Forças Armadas foi encontrada e possibilitou a instauração do IPM. O motorista Nelson Raimundo se apresentou e, após vários interrogatórios, indicou no dia 8 de agosto o nome de Climério da Guarda Pessoal do presidente Vargas.

Alcino acreditava que não podia ser preso por trabalhar de “secreta”, como dizia, e não poder revelar a sua função, um dos motivos que o levava a andar armado. Ele não sabia que a pessoa que estava com Carlos Lacerda, que matou para não ser detido, era um major da Aeronáutica à paisana. Além do inquérito policial, houve um inquérito policial-militar que apurou o crime a partir de suas conotações políticas. As apurações feitas envolveram Gregório Fortunato, chefe da Guarda Pessoal, e seus subordinados.

O assassinato do major Vaz e o atentado contra Carlos Lacerda acabaram sendo utilizados politicamente para derrubar Getúlio Vargas e resultaram no suicídio do presidente na manhã de 24 de agosto de 1954, na sede do poder executivo, no terceiro andar do Palácio do Catete. [No quarto de Vargas, no terceiro andar do Palácio do Catete, hoje transformado no Museu da República, ainda está lá, na parede, o relógio parado e marcando 8h35. ]

Anos antes, os tiros que haviam matado o candidato a vice-presidente, João Pessoa, em Recife, em 26/7/1930, da chapa do próprio Getúlio Vargas, foram o pretexto utilizado por ele mesmo para a Revolução de 1930. A imprensa, a opinião pública e as Forças Armadas foram importantes nos dois eventos: tanto para a ascensão de Getúlio Vargas em 1930 como para sua queda em 1954.